Na ilha de Jeju, no sul da Coreia do Sul, há séculos um grupo de mulheres desafia as águas frias do Mar do Leste — conhecido também como Mar do Japão — armadas apenas com uma faca, um par de nadadeiras e a coragem de quem aprendeu a respeitar o mar desde o berço. Elas são as haenyeo, as lendárias 'mulheres do mar', guardiãs de uma tradição que mistura aventura, ciência e resistência.
As haenyeo mergulham até 15 metros de profundidade em busca de moluscos, ouriços, pepinos-do-mar e algas marinhas. Tudo isso sem tanques de oxigênio ou tecnologia sofisticada. A única fonte de ar é o que cabe nos próprios pulmões — e a respiração pausada que aprendem desde jovens.
Com turnos que duram até sete horas, mesmo sob o rigor do inverno coreano, essas mulheres enfrentam riscos extremos: doenças de descompressão, encontros com tubarões, redes de pesca traiçoeiras e, não raro, a perda auditiva provocada pelas variações de pressão.
Mas não é apenas a coragem que chama a atenção do mundo. É o que o corpo dessas mulheres é capaz de fazer — e o que ele pode ensinar à ciência.
Um estudo internacional iniciado em 2019 revelou algo surpreendente: a genética das haenyeo guarda adaptações raras que podem oferecer respostas a problemas que afetam milhões de pessoas no mundo todo, como hipertensão e resistência ao frio extremo.
A geneticista Diana Aguilar Gómez, da Universidade da Califórnia em Berkeley, liderou as análises que compararam haenyeo ativas com outras mulheres da ilha e de diferentes regiões da Coreia. A diferença era clara. Nos chamados 'mergulhos simulados', a frequência cardíaca das haenyeo despencava muito mais rapidamente — um reflexo fisiológico que permite conservar oxigênio durante os mergulhos.
Mas o maior achado veio do DNA: uma variante genética que parece ajudar a regular a pressão arterial — um possível fator de proteção contra pré-eclâmpsia e outras doenças vasculares —, além de uma mutação associada à resistência ao frio, adquirida em gerações que mergulhavam o ano todo, até mesmo com trajes de algodão no auge do inverno.
Para Aguilar, essas descobertas podem ser o primeiro passo para novos tratamentos médicos. “A ciência é como um jogo de montar. Nós entregamos algumas peças e outros pesquisadores construirão com elas. Mas tudo começou com as haenyeo”, disse à BBC.
Nos anos 1960, havia mais de 30 mil haenyeo em Jeju. Hoje, são menos de 3 mil — e mais de 80% delas têm mais de 60 anos. O mergulho livre, que já foi o sustento de milhares de famílias, perdeu espaço para empregos mais seguros e confortáveis no turismo e nos serviços.
Apesar disso, o espírito das haenyeo resiste.
Na ilha de Geoje, a jovem Sohee Jin, de 32 anos, trocou a rotina urbana de Busan para mergulhar entre as rochas. Hoje, ela compartilha sua rotina nas redes sociais, inspira outras jovens, aparece na televisão e até participou de um filme.
Com sua amiga Jungmin Woo, também mergulhadora, lidera uma nova geração que luta para adaptar a tradição ao século 21. Juntas, enfrentam não só os desafios do mar, mas também os impactos das mudanças climáticas, redes ilegais de pesca e a invisibilidade que ainda ronda o trabalho das haenyeo.
As haenyeo são mais do que uma curiosidade cultural: são símbolo de um modo de vida em que o mar não é inimigo, mas extensão do corpo e da alma.
O ofício passado de mãe para filha construiu uma sociedade onde o feminino tem voz, onde o trabalho duro é sinônimo de respeito, e onde o oceano, com toda sua força e mistério, encontra mulheres dispostas a enfrentá-lo de igual para igual — todos os dias.
Hoje, além de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade reconhecido pela Unesco, as haenyeo são também guardiãs de um conhecimento genético raro, com potencial de salvar vidas.
Elas mergulham, mas não afundam. Elas desafiam a natureza, mas com reverência. Elas são, antes de tudo, herdeiras de um mundo que insiste em não ser esquecido.